Aline Fiamenghi

Considerações sobre o corpo que dança a partir de uma psicanálise

Aline Fiamenghi

Corpo ou corpa? Temos adotado o feminino para dizer do corpo que dança. Essa corpa escapa às significações fixas, diferente do corpo do sintoma que estamos mais familiarizados na psicanálise clínica, aquele corpo catalogado, fixado num modo de gozo. Que ama, sofre e trabalha, sempre do mesmo jeitinho.

Para dançar o corpo precisa se despir de si. De alguma forma esse corpo precisa se desfazer de seus sistemas, de seu nome, da sua história para ser outro. Decodificar-se e criar novas cifras. Grandes desafios, afinal não é fácil nos livramos de nós mesmos.

A música, o tempo e o espaço são ressignificados na poética do dançar e essa corpa que se move a partir das marcas de lalíngua e talvez, um pouco além delas, desloca-se em devires; bicho, coisa, planta, nem isso nem aquilo. Um trânsito tenso entre sabores e saberes. Helena Katz escreveu algo que faz muito sentido pra mim, “a dança impede o corpo de morrer de clichê”. Sempre me lembro disso quando vejo um trabalho que me toca.

Tenho me perguntado como a psicanálise pode contribuir para a construção desse saber (poético) que vem do corpo e ao mesmo tempo como ela pode aprender com ele. Não sem algum forçamento me aventuro.

Podemos deduzir que a corpa engendra um efeito feminizante? No Seminário 18: “De Um Discurso Que Não Seria Semblante” (1971), Lacan se pergunta se a psicanálise como ele a define dá acesso a uma Mulher, ou se para que uma Mulher advenha é coisa que não se ensina. O que não pode dela ser sabido no inconsciente?

Aqui uma aproximação ao desejo, no sentido que há algo de linguageiramente articulado que nem por isso é articulável em palavras. Aqui ele separa o desejo da histérica, além de dizer que o discurso analítico se instaura dessa restituição, da verdade à histérica. A histérica (e a mulher) não coincide à Mulher se funciona na significação fálica, ou melhor dizendo, não estaria necessariamente do lado Não Todo (Mulher).

No mesmo seminário, ao falar da estrutura de ficção da verdade, ele aponta para o efeito feminizante da carta roubada no conto de Alan Poe, que ele traduz por “A Carta em Suspenso”, e formula que “A Mulher” não existe, ou seja, ela não é universal, não faz conjunto.

“Trata-se, pois, de tornar sensível como a transmissão de uma carta/letra se relaciona (…) com o gozo (…) trata-se, expressamente de estudar a carta/letra como tal, na medida em que ela tem, como eu disse, um efeito feminizante” (LACAN, 1971/2009, p. 121).

Do efeito feminizante da carta em sua relação com o gozo, podemos aportar no Seminário 20: Encore (1972), e sua asserção sobre A Mulher: A Mulher, isso não se escreve. Esse não se pode escrever, possui, fundamentalmente, relação com o gozo outro, inescrevível.

“A Mulher (La feme) tem relação com gozo outro por um lado e, por outro, ela pode ter relação com o gozo fálico, e já é nisso que ela se duplica, que ela não é toda”. Lacan faz corresponder gozo outro – S(A ) e o gozo feminino? Acho que não, mas escreve que A Mulher é quem transita, quem tem acesso aos diferentes modos de gozo.

Ana Paula Gianesi sustenta em seu texto “Sobre um suplemento significante” que a não equivalência entre os sexos, no sinthoma, não é da ordem da realização fantasmática. O sinthoma ao mostrar a não equivalência entre o Homem e a Mulher, talvez permita, a um só tempo, o modo de gozo relativo a S( A) e o necessário de S1 (o que não vem sem a contingência). Interessante pensarmos, que a não equivalência e a não simetria entre o Homem e a Mulher postos na via do sinthoma chamam a abertura da lógica não-toda e do efeito de um além do significante (e da significação fálica).

Esta visada do sinthoma, da identificação ao sinthoma quanto um signo, quanto aquilo que é da ordem da cifra (que não mais clama por decifração), pode nos implicar, por uma torção, na direção do tratamento. Assim podemos entender esse vetor clinico, não só pela via do esvaziamento, mas também um acesso a um gozo “mais digno”. Um gozo trans? Aquele que (trans)ita?

Ainda sentido feminizante, da abertura, ao se liberar dos códigos simbólicos pressupostos engendrando um campo sensível da experiência, que antes de ser nomeado numa sensação experencia uma suspensão de sentido, a corpa em questão transmite um dizer sem palavras. Pina Bausch dizia que dançava o que não podia dizer. Esse indizível é corporificado, produz efeito/afeto por transmitir algo do Real, que atinge o corpo.

A abertura para esse campo sensível, esvaziado num primeiro momento de significado (algo talvez análogo a primeiridade pierciana?) pode vir a produzir algo novo, que se dará a ler. A dança implica um modo de conhecimento engendrado pela própria expressão desse corpo em movimento. Embora esteja falando da experiência do dançar, acredito que o espectador implicado, que não somente vê, mas testemunha ativamente a experiência, é afetado em seu corpo, compartilhando desse campo sensível.

Como falar de dança que não pela polissemia ou suspensão dos sentidos?

Eu escolhi 3 trechos de filmes onde a dança transmite o trans-bordamento. Aqui as danças coincidentemente são feitas por mulheres. Dois deles tem a dança como cena final, Corsage e Lavoura Arcaica, indicando um “final aberto”.

Corsage, dirigido por Marie Kreutzer, conta a história da famosa imperatriz Sissi da Austria (1877). Abusa de liberdades históricas como luz elétrica, gola rolê, para falar um pouco do lugar da mulher ainda hoje. Aos 40 a imperatriz é tida como velha e depois de um esforço sobre humano para caber no “espartilho” social algo começa a se descolar. O filme inteiro exala o que dela não cabe, transborda. No ato/cena final ela cai, como objeto, submerge e retorna depois dos créditos numa dança com o vento.

Em Os Fabelmans, espécie de autobiografia de Spilberg, ele ainda criança, se apaixona por cinema e começa a editar cenas da vida cotidiana, nessa edição ele revela segredos não ditos que se deram a ler pelas lentes de sua câmera. A dança da mãe deprimida no acampamento é uma das grandes cenas do filme.

Por último Lavoura Arcaica, que ao meu ver funciona nos marcadores masculinos do tempo, do pai e da lei, termina com umas das cenas mais lindas do cinema, a dança exuberante de Ana, seguida do corte.

O corpo sempre dá um jeito de dizer o que não pôde ser dito.

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