Aline Fiamenghi

MOVIMENTO AUTÊNTICO

MOVIMENTO AUTÊNTICO:
UMA INTRODUÇÃO

Na década de 1950, nos Estados Unidos, surgiu um movimento importante que uniu a dança à psicoterapia. Mary Whitehouse, analista junguiana e dançarina, foi a precursora do que é conhecido por Movimento Autêntico. Janet Adler e Joan Chodorow, entre outras analistas, estudaram com ela e deram continuidade ao seu trabalho.

Em 1966, a dança-terapia tornou-se uma profissão nos Estados Unidos, com a criação da American Dance Therapy Association. A associação era formada por dançarinas, coreógrafas e professores de dança ligados aos efeitos terapêuticos da arte.

No Movimento Autêntico, os praticantes são encorajados a focalizar sensações corporais, imagens e sentimentos que podem surgir a partir do trabalho com o corpo, a fim de investigar conteúdos inconscientes.

Ele propicia ao indivíduo a capacidade de conectar imagem e afeto, voltando a experimentar algum aspecto somático importante. Neste tipo de trabalho, o analista tem o papel de “testemunha silenciosa”, possui a tarefa de fornecer suporte à investigação profunda de seu paciente. (WYMAN-MCGINTY,1998).

Para Whitehouse (1999), o Movimento Autêntico ocorre quando o ato de se movimentar é simples e inevitável, não há nada a ser modificado. Ele é genuíno e individual, verdadeiro no sentido de que não é aprendido.

Como terapeuta, ela estava interessada no instante em que o indivíduo é instigado pelo movimento, em que não há controle egoico. Ela diferencia estes dois tipos de ação: “eu movo” (a partir do ego), ou “sou movido” (pelo movimento). E aproxima seu trabalho de improvisação ao conceito de imaginação ativa proposto por Jung, por ser um trabalho também operado pela consciência, mas não dirigido por ela, atmosfera onde o inconsciente pode se expressar por meio de imagens.

O material obtido nas experiências é usado para ajudar as pessoas a se entenderem. “Ao trabalhar com o corpo, eu trabalho direto com o inconsciente, por isso essa é uma abordagem e um ponto de vista, e não um método” (WHITEHOUSE in PALLARO, 1999, p. 64).

A terapeuta também considera que muitos aspectos do indivíduo são abarcados e exigidos para essa experiência. Segundo ela, a experiência consciente do movimento físico produz mudanças na psique. Com experiência consciente, ela quer dizer: perceber como nos movemos, de que maneira nos movemos, principalmente nas experiências comuns do cotidiano.

Ela acredita que por mais que tratemos o corpo como um objeto mecânico, ele também sempre será expressivo, uma vez que é humano. O corpo é o aspecto físico da personalidade, e o movimento faz a personalidade visível, faz o caráter ser reconhecido.

Em seus escritos uma constante é o “deixar acontecer”. O movimento é algo a ser “achado” no corpo, e não colocado como um vestido ou um casaco (WHITEHOUSE in PALLARO, 1999, p. 53). Por isso, o trabalho é proposto a partir da consigna: “Feche os olhos e mova-se”.

O movimento sempre traz uma surpresa, traz formas que demorariam muito mais para serem aprendidas pela intenção consciente. Por exemplo, as pessoas balançam muito bem sem saber balançar.

Ao trabalhar com o corpo, eu trabalho direto com o inconsciente, por isso essa é uma abordagem e um ponto de vista, e não um método”

(WHITEHOUSE in PALLARO, 1999, p. 64).

Quando a experiência do movimento passa pelo ego, ela vem repleta de inibição e crítica. Porém, quando ela surge como uma sabedoria do corpo, o canal com o si-mesmo ou a totalidade são abertos. Sendo assim, o movimento passa a fluir e ser experimentado como um sonho: vívido, efêmero e cheio de afeto. (Ibid. p. 54).

O si-mesmo na Psicologia Analítica, é o arquétipo da totalidade, indica a estrutura psíquica total e complexa. Esta é a meta do processo psíquico e, ao mesmo tempo, seu ponto de partida. Ele abarca uma consciência inconsciente fora da própria consciência (do ego), já que é a totalidade da psique individual e coletiva.

 

Segundo Jung: “…damo-nos conta não do eu, mas sim daquele si-mesmo estranho que nos é próprio, que é nossa raiz, da qual brotou, em dado momento, o eu. Ele nos é estranho porque dele nos alheamos pelo extravio da consciência” (JUNG, 1976 [1934] , par. 318). Podemos pensar que o Movimento Autêntico surgiu a partir deste conceito, buscando um canal com o ser mais individual, mais legítimo.

Este é um trabalho que pode sugerir ao cliente alguns insights, no entanto se torna imprescindível atentar para manter um campo aberto onde o movedor construa e experimente suas próprias imagens. Na medida em que mobiliza o corpo e estabelece com ele um tipo próprio de comunicação, estaria mais a serviço de produzir questionamentos do que dar respostas. Sobre os efeitos desta articulação uma contribuição de Deleuze:

A comunicação, em primeiro lugar, é algo que violenta o pensamento, como diz Deleuze. Ser violento aqui é nos forçar a pensar, e as coisas que nos fazem pensar, diz o filósofo, são mais importantes que o próprio pensamento. (MARCONDES FILHO, 2008, p. 429)6

Janet Adler (1999), montou uma metodologia para trabalhar com o Movimento Autêntico que se trata de: 1. Deixar o cliente à vontade e poder perceber quando se está experimentando um movimento autêntico e quando não; 2. Abrir um canal de expressão para o movimento autêntico; 3. Reconhecer os padrões e formas de movimento que se repetem; 4. A partir dos movimentos que persistem, eleger um tema para focalizar o trabalho, saber mais sobre ele, ir com ele, exagerá-lo e confrontá-lo. Esta última é a etapa mais importante, nos adverte a autora.

Segundo ela, é um trabalho que não privilegia a história pessoal do cliente, mas, às vezes, torna-se necessário sabê-la, dependendo do progresso do trabalho.

Ela acredita que os movimentos idiossincráticos são poderosos por expressarem os aspectos menos conhecidos da personalidade e só podem ser reconhecidos pela repetição. Os padrões ou qualidades de movimento refletem a natureza complexa e única dos indivíduos.

Para ilustrar o reconhecimento de padrão, a terapeuta apresenta o exemplo de uma de suas clientes: durante dias de trabalho, a paciente percebia suas mãos tensas. Quanto mais ela tentava relaxar, mais tensas elas ficavam. A terapeuta propôs, então, que a cliente deixasse suas mãos dançarem livremente. Dessa dança surgiu um movimento de recolher e esticar braços e ombros, como um “ir embora”, “afastar-se”. Em seguida, a cliente se deu conta de como ela “sempre fora claustrofóbica”. (Ibid. 1999, p. 126).

É interessante observar, a partir do relato, que a paciente não foi sugestionada ou dirigida por nenhuma imagem da terapeuta; apenas foi solicitado que ela se atentasse ou desse movimento ao que estava acontecendo com suas mãos naquele momento. A partir de então, surgiu um dado antigo, porém, ainda não conhecido. Se há sugestão, não há elaboração. Assumimos uma escuta, ou um olhar, para descrever o acontecimento, sendo que ele guarda algo que não sabemos.

Não há analogia entre o conteúdo latente e o manifesto. O trabalho analítico faria as imagens circularem entre os dois, a fim de elaborar a experiência que, em si, é inacessível.

As autoras também sugerem uma aproximação da experiência do Movimento Autêntico às experiências místicas. Primeiro, pelo papel central que o corpo tem em ambas, uma vez que é nele que se dá a transformação; além da característica de serem experiências transcendentais ou numinosas, ou seja, operadas por algo maior que o ego (ADLER in PALLARO, 1999, p. 172).

Chodorow (1999) considera que, apesar do interesse e entendimento de Jung sobre as influências das experiências corporais nos processos criativos, a real importância do corpo ainda não foi reconhecida pela Psicologia Analítica. Ela considera que a experiência da dança-movimento, na análise, é uma ponte para as experiências precoces dos estágios pré-verbais de desenvolvimento.

A autora separa cinco eventos simbólicos que normalmente aparecem nos processos individuais de dança: 1. padrões urobóricos de acolhimento próprio; 2. busca da testemunha e, com isso, um sorriso de reconhecimento; 3. risadas e próprio reconhecimento; 4. desaparecer e aparecer e 5. engajamento no processo simbólico, via imaginação livre, usando mímica.

No entanto, ela julga mais importante do que os padrões de desenvolvimento da libido a questão de como o terapeuta pode engajar inteiramente a imaginação no processo terapêutico. A autora insiste em questões como: Como esse corpo existe? Quais suas fantasias de como poderia ser o corpo? E principalmente: Quais as possibilidades de imaginar “com” e “sobre” o corpo?

Guiados por estas últimas questões ficamos com a potência do corpo e do movimento como possibilidades de investigação psicológica, na medida em que instaura uma experiência para além do ego e dos limites já conhecidos.

foto: Janet Adler (esquerda) e Soraya Jorge

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