No contexto atual atravessado pela pandemia instaurada pela COVID-19 muitas questões se apresentaram aos psicanalistas no que concerne a possibilidade de continuar sustentando os tratamentos on-line. Para isso estamos colocando velhos temas em questão e depurando o que é preciso, de fato, para uma análise acontecer. O setting analítico ruiu e com ele algo também do semblante do analista. No distanciamento dos corpos, na impossibilidade dos deslocamentos aos consultórios, na dificuldade em ter privacidade; as coordenadas clínicas ficaram, ao meu ver, mais evidentes e sucintas; as análises seguiram sustentadas pela transferência e não sem um esforço a mais.
Nesse breve texto, pretendo refletir sobre essas questões colocando o corpo em destaque.
O que é o corpo para a psicanálise?
Qual corpo faz análise?
Quais os efeitos de tirar o corpo fora? Segundo Lacan temos um corpo e só um.
Ao passo que, acompanhamos as discussões sobre o corpo tridimensional em nosso campo, sacamos as pistas no Ensino e fazemos algumas torções possíveis, nos enodamos no corpo e com ele fazemos laço social.
O corpo torna presente o sujeito evanescente na cadeia, o que evidencia que corpo e sujeito não são a mesma coisa. Conquanto, ”é pelo corpo que se o tem”, (Lacan, 2003, Outros Escritos, p565), a dominação dos sujeitos passa pela dominação dos corpo. Temos o recurso jurídico do habeas corpus, por exemplo, para impedir uma prisão preventiva. É algo polêmico de se pensar, e um tanto paradoxal, mas ao meu ver indica que o corpo é um topos, um lugar, uma coordenada do sujeito.
É possível deduzir que tratar o inconsciente é o mesmo que tratar o corpo? Temos acompanhado a articulação entre sintoma e corpo desde os primórdios da psicanálise a partir das formulações sobre a histeria, os avanços sobre o gozo e mais adiante a conceituação de Lacan no final de seu ensino sobre o sintoma como acontecimento de corpo. O que é próprio do acontecimento do corpo é a existência de uma marca traumática. O infantil que dá lugar a uma zona privilegiada do corpo que localiza o gozo. Essa articulação de corpo e gozo a partir da incidência do significante faz o corpo vivo que interessa a psicanálise.
Recupero o corpo nos três registros destacando algumas breves e iniciais considerações:
Corpo imagem
Ampliamos o corpo do domínio do Imaginário, as três dimensões do corpo, R S I, isso faz 1. Um corpo? “Temos um corpo e só um”. O corpo se enoda como ser falante pelas três dimensões e faz o número 1 (Lacan, 1974, A Terceira).
Segundo Soler (2019, p.19) quando Lacan diz “o imaginário é o corpo” ele já não designa somente a imagem nem somente a representação. O Imaginário, como dirá, tem uma consistência que é real, quer dizer, vai mais além da imagem.
Em A Terceira (1974) Lacan nos mostra que quando há o avanço do gozo do Outro sobre o Imaginário do corpo temos a angústia, que pode ser descrita como o medo de restringir-se somente ao corpo, sem representação. O medo do corpo. Da coincidência entre o ser e o corpo.
Escutava esses dias uma pessoa infectada pela Covid-19 traçar um paralelo entre o sintoma de taquicardia produzido pelo vírus e sua conhecida angústia: “tenho medo da noite porque estou sozinha, sem ninguém pra falar e então é muito parecido (com a angústia), sou só um coração pulsando forte, um vazio, a morte”. Na primeira noite com esses sintoma chegou a ir ao hospital e depois de fazer todos os exames voltou para casa com diagnóstico de crise de pânico. Na segunda noite recorreu à análise e pôde dizer disso. Dizer da angústia é a possibilidade de mediar essa experiência direta, é só o que temos para extrair, ou esvaziar o que de Real produz o sintoma.
Corpo Real
“Eu chamo de sintoma o que vem do Real. É preciso que o Real do sintoma morra” (Lacan, 1974). O sentido ex-siste ao Real, é preciso cessar o sentido – ele traz a imagem do peixinho devorador de sentido. As palavras que introduzem no corpo as representações são o cúmulo do sentido. O corpo neurótico recorre à isso o tempo todo por isso é pelo equívoco que o analista opera, por um pensamento que não faça sentido, na direção do equívoco, do enigma e da repetição do “não há relação sexual”, que descontinua e incide na abertura.
Cito Lacan (1975/2007, Sem. 24) “é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja algo no significante que ressoe… O equívoco é a única arma contra o sinthoma.”
Venho trabalhando isso articulado a questão da função poética, em textos que foram apresentados nos dois últimos Encontros Nacionais no exercício de formalizar como a intervenção do analista toca o corpo analisante. Lembrando que o poético aqui não é uma construção métrica, mas uma função. Algo que faz função de abertura, inscreve um conjunto finito e aberto, raspando no Real do sintoma. O enigma visa atingir o furo, o que do inconsciente não será jamais interpretável.
(Um parênteses sobre a questão do Real do corpo nas artes para ajudar a pensar a clínica)
Palavras introduzem no corpo alguma representação, o cúmulo do sentido. Lacan diz imbecil o que é da ordem do pensamento e do sentido. Existiria um pensamento que não faça sentido? Pensar com os músculos da testa, pensar com os pés, ele sugere em A Terceira, afinado com Nietzsche que propunha escutar com os músculos. Não é o que o artista faz?
A dança, por exemplo, é o próprio pensamento do corpo, um pensar fora do sentido, um corpo que engendra sua semiose em si mesmo, nas próprias articulações e sistemas. José Gil, filósofo português, observou o processo através do qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste os seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”, ou do corpo-organismo.
Kuniichi Uno (2012) nos traz a expressão “corpo catástrofe”. Uma vez que a realidade dada através do corpo rompe com a significação e trata-se de uma ruptura inqualificável. Não surpreende que as artes do corpo apresentem uma imagem rompida, uma ruptura do tempo e de artifícios barrocos.
“Você encontra um corpo destacado da pessoa, da palavra, do contexto, dos sentidos, da história, da paisagem. Nesta catástrofe, um corpo é sempre estranho e estrangeiro com sua opacidade inatingível, inexaurível, irredutível. O corpo pode significar qualquer coisa, ao constituir signos, gestos, mímicas com todas as suas movências. Mas a realidade dada através do corpo rompe com a significação … O corpo como ruptura implica um aspecto partido do tempo, da história, um aspecto catastrófico do tempo”. (Uno, 2012, p.55.)
Faço esse desvio para interrogar: não poderíamos escrever esse corpo que cria, corpo catástrofe ao lado do Não Todo? Um corpo trans (que transita) entre gozo fálico e gozo outro e não se produz na significação. Pina Bausch dizia que dançava o que não podia falar. O corpo sempre sofre pelo fato de a linguagem nunca conseguir simbolizá-lo de uma maneira completa.
Fazer uso da dimensão mimética do corpo para dizer o indizível. O que não se escreve encorpora? Insisto na dança porque acredito que ela transmite algo do Real, que é exterior ao sujeito e avesso as suas coordenadas.
Corpo linguagem
A dissociação entre a anatomia e a doença a propósito do sintoma na psicanálise, indica que uma estrutura, a da linguagem, recorta o corpo determinando um corpo outro que não aquele que encontra a sua condição na anatomia. Afirmar que a linguagem recorta o corpo é dizer que a condição do corpo se encontra na linguagem. Dito de outro modo, é dizer que a linguagem determina o corpo. Essa concepção geral do ser falante, segundo a qual o gozo está necessariamente ligado ao corpo implica, por definição, que não há harmonia na relação entre o sujeito e o gozo. É o que Lacan formula, em seu seminário …Ou pior, a propósito do ser falante: “é essa relação perturbada com o próprio corpo que se chama gozo”. (Izcovich, 2020)
O corpo encarnado é o corpo afetado pelo Simbólico, com uma localização do gozo, aparelhado, dizia Lacan.
Em Radiofonia ele sugere, “ É incorporada que a estrutura faz o afeto… afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser”… “Nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere, a tal ponto que ele não existiria senão pudesse falar” (p. 406). O afeto é in-corporado. A linguagem corpsifica o corpo, na medida que permanece corpo após a morte. O corpse, adquire um além vida, a dimensão de um corpo falado. O simbólico garantindo certa vida após a morte.
Se o analista ouve os restos das histórias contadas e faz aparecer as insuficiências lógicas dos sentidos dos ditos, os enunciados do corpo podem ter seu papel nesse desmonte de cena. Pessoalmente sinto falta dessa dimensão que escapa à fala no atendimento remoto. Um tremor no rosto ao falar da mãe, ou um soco no divã que passa despercebido. Corpo em ato. Ainda que a voz esteja livre de ser outra coisa que não substância, tem algo na materialidade do corpo que escapa ao sentido e faz falta.
Das entrevistas preliminares à uma análise propriamente dita, sempre se tratou da confrontação dos corpos. O discurso do mestre captura os corpos, ele os estanca, disso sabemos. Mas como o discurso analítico captura os corpos? É preciso que haja um corpo como suporte do dispositivo “sujeito suposto saber” que é motor de uma análise. Isso depende do semblante que sempre se deita sobre uma verdade. O analista, enquanto corpo, instala o objeto a no lugar do semblante. Ele instaura o semblante e, portanto, o dito dos pacientes, conclui Izcovich (2020).
Sob a luz da virtualidade e do atendimento remoto, sem o corpo a corpo, principalmente no início de novos tratamentos, será que algo caduca, ou seria ao contrário? Seria o semblante é uma virtualidade encarnada?
Não há discurso que não seja dirigido pelo semblante. O analista ciborgue continua atrás da tela, pagando com seu corpo inclusive, com suas retinas, seus ouvidos e com sua presença, sua fala – a interpretação. Como se apoia o significante, o semblante, o objeto a na desmaterialidade do virtual, no apagamento das fronteiras físicas e corporais?
Por um lado sabemos que toda realidade subjetiva é virtual, esse sempre foi o campo, mas agora contamos com esse outro corpo, ciborgue1, estendido, mediado pelos devices. Tento computar os efeitos disso no dispositivo analítico.
Você taí? Caiu? A mostração de partes do corpo, os fios, os fones, a casa, o quarto, o pano de fundo, sem vídeo, com vídeo, audios entrecortados, vozes metálicas, atenção mais que flutuante. Novas montagens para velhos analistas.
Quais as implicações da Pã-demia para os psicanalistas? Recorro a referência mítica do deus Pã (Dioniso no grego) que era reverenciado fora dos centros da cidades. Os rituais em sua homenagem aconteciam nas florestas e eram conhecidos pelo êxtase das bacantes, que entusiasmadas pelo deus invadiam as cidades provocando pânico. Uma leitura metafórica para a crise do pânico, conhecida por nós como angústia. Um atravessamento que abala a fantasia fundamental, uma invasão estrangeira que muitas vezes tem efeito de despersonalização.
Esse advento do Real não abala a fantasia da psicanálise? Qual será o efeito desse corte? Só podermos responder depois. Sigo cheia de perguntas. Escrevi este texto no exercício de pensar o que não seria possível sustentar a partir do contexto remoto, mas pelas pistas que segui posso dizer que não é impossível. Como disse um analisante, depois de muito queixar sobre a falta que sente do deslocamento, da privacidade, da imagem da analista abrindo a porta, quando pergunto: e sua análise? Ah, essa vai muito bem!
1 Cito o corpo ciborgue para trazer essa quebra de fronteira física, é algo que há muito vem afetando os corpos. Em 1985 a bióloga e filósofa norte-americana Donna J. Haraway escreveu o “Manifesto ciborgue – ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX”, um ataque frontal a política de identidade. Ela mostra como o desenvolvimento científico e tecnológico está presente no mundo do trabalho, na alimentação, na produção do conhecimento e nas mais diversas dimensões da vida. Nesse novo enquadramento histórico, seriam desfeitos pela tecnologia alguns pressupostos científicos e políticos que por muito tempo nortearam o pensamento ocidental e serviram à dominação das mulheres, das “pessoas de cor”, dos trabalhadores e dos animais. Nesse ensaio a autora discute a confusão de fronteiras centrada na figura do ciborgue, criatura formada por fusões entre máquina e organismo, mistura de realidade social e ficção, que não constitui um corpo sólido com componentes definidos. Portanto, propõe a quebra de três fronteiras cruciais: humano / animal, humano / máquina e físico / não-físico.
O ciborgue não é um sistema matemático e mecânico fechado, mas um sistema aberto, biológico e comunicante. O ciborgue não é um computador, e sim um ser vivo conectado a redes visuais e hipertextuais que passam pelo computador, de tal maneira que o corpo conectado se transforma na prótese pensante do sistema de redes. (PRECIADO, 2017, p.167)
Referências:
LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. O Seminário, Livro 19: …Ou Pior. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
LACAN, J. O Seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. (1975-76). Inédito.
LACAN, J. A Terceira. Inédito. 1974.
PRECIADO, P. B. Manifesto Contrasexual. Anagrama. 2017.
SOLER, C. O em-corpo do sujeito: seminário 2001 – 2002. Salvador, Ágalma, 2019.
UNO, K. A Gênese de um Corpo Desconhecido. São Paulo. N-1 Edições. 2012.
IZCOVICH, L. in Psicanálise e Pandemia. Org. FCL – MS. Aller. 2020
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