Aline Fiamenghi

Qual palavra faz corpo?

Aline Fiamenghi

Resumo:

Apresentamos algumas ideias acerca do corpo no campo lacaniano a fim de articular como a função poética engaja o corpo na clínica. O corpo como resposta singular de como a linguagem afeta o sujeito e o poético como possibilidade de ressoar outra coisa que não o sentido, fazendo função de furo, como nos aponta Lacan no Seminário 24. Nessa articulação que chamamos de corpoética, a ética do desejo como terceiro elemento a partir dessa ligação, resposta singular dos efeitos/afetos da linguagem no corpo.1

Palavras-chave: Corpo, Poética, Afeto, Lalíngua

Artigo publicado na Revista Stylus – vol. 43:

https://stylus.emnuvens.com.br/cs/article/view/1014/654

1 Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional da EPFCL-Brasil 2018

A construção do corpo se dá como uma montagem a partir dos orifícios e de um dizer. Na formação do eu, pedaços de corpo que formam um outro. A libido atravessa as partes e determina os modos como um corpo se satisfaz, as muitas formas de usar e gozar do corpo. Esse “mito fluídico” (Lacan, 1974, inédito) garante que o corpo seja todo ele uma zona erógena. Mesmo que se possa fazer uso deste é sempre um uso não todo. O sujeito não é mestre de seu corpo o que aponta para um radical outro, um heteros. O corpo não seria mais um nome do estranho familiar?

No contato traumático do bebê com seu cuidador o desencontro fundamental: o bebê grita, pois este é o primeiro uso do orifício oral, quem cuida responde, mas a resposta nunca é exatamente o que o grito demandava. Segundo Nagem (2018) o desencontro, o desapontamento e a desproporção são as vertentes em que os corpos se constroem e que os sujeitos se enlaçam. O que determina os modos de enlaçamento é algo muito pequeno, uma pequena cena montada no instante mítico da divisão. Se for neurótico o sujeito responde a essa divisão com a fantasia e se for psicótico responde com o delírio.

Este desencontro inicial deixa uma marca. Marca o corpo com uma abertura, uma passagem. Posteriormente, falar é a experiência de ocupar esta passagem e construir um corpo próprio. Simultaneamente ao corpo libidinal temos o corpo vibrátil, corpo vida sensível aos efeitos dos fluxos ambientais que atravessam. Corpo ovo no qual germinam estados intensivos e desconhecidos provocados por esses fluxos, fazendo e desfazendo-se incessantemente, o corpo em sua vibratibilidade e ressonâncias.

Spinoza (2008) em sua Ética tece uma importante consideração acerca dos afetos. Primeiro aponta que podemos pensar a afetividade humana de maneira distinta daquela pela qual foi pensada pela tradição, isso é, não apenas do ponto de vista da paixão, senão também da ação. Compreende as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. O que parece nos interessar aqui é o efeito de corpo do afeto. Um modo de existência definido pela possibilidade de ser afetado.

O que nos faz pensar no modo de existir da angústia, por exemplo, como afeto que não engana. Ela pode ser considerada tanto um afeto (espírito) quanto uma afecção (corpo). Como a potência de agir do corpo é diminuída ou aumentada a partir desse afeto? Qual a resposta de corpo? Não é difícil escutarmos na clínica o relato da angústia referido a uma sensação corporal, a uma necessidade de localização, como uma mão no peito, por exemplo. A angústia é o puro corpo ou o medo dele, a certeza do desamparo, a sensação de algo cai como um lençol e então, o que restaria? Reduzir-se ao próprio corpo.

Onde aponta a angústia o real espreita. Angústia como índice. O sujeito da angústia em relação ao tempo e ao espaço, distante ou muito perto do objeto a. Como escutar isso no corpo significante, na série? Como o sujeito fala de seu corpo? O corpo na palavra e o corpo da palavra.

Apresento aqui algumas ideias coletadas de nosso campo que sustentam o corpo nos três registros R S I.

Pollo (2012) sugere que abordamos o corpo em psicanálise segundo três vertentes: da pulsão, da imagem especular e do gozo, às quais podemos fazer corresponder às dimensões do simbólico, do imaginário e do real, e o denominador comum do falo viria atar em nó de significação, em sintoma real.

Gianesi (2011) apresenta o corpo no imaginário como imagem especular, como formador da função do eu no Estádio do Espelho, em seguida como veste, pele ou casca. No simbólico o corpo linguagem, o corpse (cadáver), a partir de Lacan em Radiofonia. Por fim, no real enquanto o mistério do corpo falante.

A partir do Seminário 10, “A Angústia” Lacan (1962/2005) articulou o corpo imaginário ao real do corpo, à carne, ao objeto a. O corpo como resto. Seguindo suas pistas:

“quando se desliga do corpo da imagem, a imagem especular, assiste-se a sua redução a um estado cedível, a pedaços de corpo. Do corpo imagem, invólucro e pele ao corpo real, carne, objeto a… Do corpo imagem ao corpo real sem nenhuma borda. Eis a abertura da angústia” (p.97).

E algum tempo depois segue em “A Terceira” (1974): “Esse sentimento que surge da suspeita que nos ocorre de nos reduzirmos ao nosso corpo”. Dizendo de um afeto que não pode ser encadeado.

A redução ao corpo real, ou a essa queda como experiência da angústia precisa de palavra. Seria possível pensar que exatamente aí a função poética pode incidir para fazer borda. O poético como borda porosa ou não delimitada, uma borda litoral que circunscreve um campo inexato, mas visa uma escrita, algo da letra, daquilo que faz rasura de nenhum traço que seja de antes. A interpretação pela função poética como borda que deixa o furo furado mesmo, mas circunscreve uma beira.

Em Radiofonia Lacan (1973/2003) nos apresenta a estrutura pelo corpo. O valor de signo do significante como índice de gozo: “ É incorporada que a estrutura faz o afeto… afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser”. E segue, “Nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere, a tal ponto que ele não existiria senão pudesse falar” (p. 406). O afeto é in-corporado pela linguagem. O corpse, adquire um além vida, a dimensão de um corpo falado. O simbólico garantindo certa vida após a morte.

Em 1975 Lacan ainda afirma que o imaginário é o corpo e por mais que possamos ler insistentemente isso em seu ensino ainda causa estranhamento produzindo uma certa necessidade de alargamento. As relações entre corpo e imagem desde o estádio do espelho estão claras, o afeto como efeito da linguagem no corpo e esta como resposta às marcas de laíngua também, contudo a localização do corpo no nó permanece um enigma ou um constrangimento.

Segundo Soler (2019) quando Lacan diz “o imaginário é o corpo” ele já não designa somente a imagem nem somente a representação. O imaginário, como dirá, tem uma consistência que é real, quer dizer, vai mais além da imagem (p.19).

Ela segue, o sujeito não é a carne, mas sim a falta dela porque é representado pelo significante na cadeia, ele não é seu corpo, mas o tem (p.23). Me detenho em “o sujeito não é a carne”, exatamente porque não é sem a carne, “os membros que fazem esse discurso inconsciente” (Lacan, 1958/2016, p.299). A carne cedida na inscrição do significante, carne marcada por lalíngua, signo de perda é marcada no corpo, também em sua fisicalidade que encontra outro corpo, o do analista, uma presença real, que ecoa as ressonâncias desse dizer sem palavras, nas muitas voltas dos ditos o indizível, audível logicamente, não sem um forçamento (forcing) analítico na visada de fazer ressoar outra coisa que não o sentido.

“Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa que não o sentido… O sentido, isso tampona, mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética (chinesa) vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica.” (Lacan 1976/1977, aula de 18 de abril)

Logicamente podemos forçar igualdades / semelhanças, pertencimentos ou negações, de forma que se possa negar sem afirmar, ou seja, pela suspensão do sentido. Ao forçar o indiscernível, estabelece-se o indecidível. Sendo o vazio indiscernível enquanto termo (pois é não um) sua ocorrência inaugural é puro ato de nomeação. Esse nome não pode ser específico, não pode classificar o vazio no que quer que seja que o subsuma (Badiou, 1996, p.55).

O poético toca o corpo

A partir de Jakobson (2010) entendemos a poética como uma estrutura verbal que faz parte da linguística. Nessa estrutura o enfoque na mensagem é a função predominante. Essa mensagem deriva principalmente do som, do acento e do ritmo. Portanto, não se pode isolar a função poética da fonética.

Em uma aproximação que nos interessa, Valéry (2011) sugere que a poética estaria mais próxima a poiesis (um modo específico do fazer grego, “trabalho poético”) do que da poesia como a conhecemos formalmente. Poética e poesia não idênticas, mas encontrando-se na combinação fabricada, na hesitação entre som e sentido e no uso da metáfora, que tem raíz metonímica e produz ambiguidade e pluralidade de sentidos. A função poética torna a função referencial ambígua.

Octavio Paz (1967) corrobora com essa ideia, na medida que libera o poético para além dos poemas, há poesia sem poema, ele escreve. Paisagens, pessoas e fatos muitas vezes são poéticos, são poesia sem ser poema. O poético está em estado amorfo, é alheio a vontade. Em última instância, o poético é um modo de conhecer/descobrir o mundo.

O mais importante é distinguir que não se trata de uma construção métrica, mas de uma função. Algo que faz função.

Segundo Bousseyroux nascemos poema como falasser. No entanto, não há ainda poeta, pois o que se apresenta é o saber sem sujeito do insconsciente-lalíngua. Trata-se de um poema sem sujeito. Por este motivo, Lacan enfatiza que nasceu poema, mas não-poeta (papoète), pondo em jogo lalíngua. Para o autor a determinação poética produz sentido e ocorreria a partir das possibilidades fônicas da língua, se valendo das figuras de linguagem como a paronomásia, o anagrama, a onomatopéia e a sinestesia, considerando que apareceria um efeito de sentido partindo da equivalência entre sentido e som, como “a atualização dos fatos do real de lalíngua, e não o efeito da retração temporal do significante no simbólico”.

Podemos pensar o exemplo da interpretação de Lacan a partir do significante “gestapo” de sua paciente. Falando da angústia que a fazia acordar durante a madrugada quando eram as costumeiras invasões da Gestapo às casas, Suzanne Hommel nos conta que Lacan certo dia pula de sua poltrona e a surpreende com um leve carinho na bochecha. Segunda ela o analista transforma “gestapo” em “geste à peau”, sem palavras, em ato, no equívoco. Função poética que opera pelo corpo do analista na marca de corpo da analisante.

Cito Lacan (1975/2007), “é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja algo no significante que ressoe… O equívoco é a única arma contra o sinthoma”. Sacamos daí que a intervenção do analista deve ser na direção do equívoco, do enigma e da repetição do “não há relação sexual”, que descontinua, incide na abertura, explicita que não há acesso ao 2.

Onde a neurose produz excesso de significação e fixação, o analista força o vazio, mantendo o enigma. Podendo inclusive decifrar e ao mesmo tempo manter enigmático, porque sempre aparecerá algo que não estava lá. Decifrar como produção de cifra ao invés de sentido, de algo que quer dizer, uma escrita. Ler o não idêntico, não pela negação do sentido, mas pela suspensão. Forçar a suspensão dos sentidos e o indecidível como táticas de abertura, de produzir furo.

Um outro recorte clínico, menos ilustre: uma analisante chega por ocasião do divórcio e conta seu sonho, “Estava andando na rua e me deparo com um muro, nele estava escrito A e Z”. As associações vão no sentido do “sem saída, do fim, do inevitável”; a analista corta a sessão: “A à Z: o percurso de sua análise”. Suspensão que circunscreve um finito aberto e visa instaurar o indecidível, convidando sua entrada em análise.

Nessa articulação do poético como ato que toca o corpo a produção de um corpoética. A ética do desejo como terceiro elemento a partir dessa ligação, resposta singular dos efeitos/afetos da linguagem. Se o desejo é um efeito da estrutura, de perda, lançamos mão da poética para dizer desse furo indizível, a possibilidade de corte com efeito/afeto de abertura.

Termino com Valère Novarina (2009), dramaturgo francês, a respeito do teatro onde segundo ele a poesia é ativa “o mundo não tem que ser descrito, nem imitado, nem repetido, mas deve ser de novo chamado pelas palavras. Ide e anunciai em toda parte que o homem ainda não foi capturado!”.

Referências:

GIANESI, A. Do corpo e da causa: pontuações sobre a práxis psicanalítica in Revista Stylus n. 20 . Rio de Janeiro. 2011.

JACKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo, Cultrix. 2010.

LACAN, J. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação (1958-59). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2016.

LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia (1962-63). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-69). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

LACAN, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.

LACAN, J. O Seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. (1975-76). Inédito.

LACAN, J. A Terceira. Inédito. 1974.

NAGEM, G. Vale tudo. Só não vale ficar homem com homem e nem mulher com mulher in Revista Stylus n. 35 . Rio de Janeiro. 2018.

NOVARINA, V. Diante da Palavra (1947). 2a edição. Rio de Janeiro, 7Letras. 2009.

PAZ, O. O Arco e a Lira. 2a Edição. São Paulo. Cosacnaify. 1967.

POLLO, V. O Medo que Temos do Corpo: psicanalise, arte e laço social. Rio de Janeiro,.Viveiro de Castro. 2012.

SOLER, C. O em-corpo do sujeito: seminário 2001 – 2002. Salvador, Ágalma, 2019.

SPINOZA, B. Ética (1632-1677). Belo Horizonte. Autêntica Editora. 2008.

VALÉRY, P. Variedades. São Paulo, Iluminuras. 2011.

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