A partir das imagens oferecidas pelo cineasta Lars von Trier, pretendemos levantar algumas questões a cerca do uso simbólico dos animais no percurso do estória, do trabalho estético e do ético na elaboração do que poderíamos chamar de mundo “natural” e a natureza do próprio trabalho psicológico ou fazer-alma, como Hillman sugere. Para trabalharmos com as imagens da alma não podemos perder de vista o bizarro, o cruel, o patologizar como mais uma das formas da alma se apresentar.
1 Trabalho apresentado no Encontro do Grupo Himma – Estudos emPsicologia Imaginal, Rio de Janeiro, 2011
“Anticristo” é um filme intenso, provocante, desafia a pensar, excita e repugna, enche os sentidos com imagens e sons pragmáticos e precisos, mas nunca definitivos. É difícil de ver, mas se não desafiasse e agredisse, não seria tão compensador. Von Trier não deixa espaço para meio-termos, enche as medidas, seja para ficarmos até ao fim ou para abandonarmos a sala o quanto antes. Filmes que mexem desta forma não há muitos. São essas experiências estéticas, que transcendem o “eu gosto ou eu não gosto”, que nos faz sair do lugar. Em grego pathos, significa basicamente a experiência de ser movido. Os movimentos das alma são pathe, mostram uma capacidade de mudança, muitas vezes dolorosa, mas não necessariamente identificadas com sofrimento.
O filme produz espanto, seja no belo ou no bizarro – binômio trabalhada com maestria por um diretor que crê nas imagens – ele nos toca, nos faz trabalhar. Nos apresenta um trabalho poético com imagens patologizadas. Patologizadas porque causam aflição, apresentam desvios, perturbam. Se existe algo errado nas imagens patologizadas, está em como nós as tratamos, no ponto de vista que adotamos, na régua que usamos. Estamos sempre sendo falados por uma fantasia. Em qual fantasia estamos inseridos? Quem está envolvido na patologia?
Na perspectiva patologizante do filme, na vida em movimento em uma análise, ou no movimento patologizante da vida, ou dançamos, ou dançamos. Explico; na rotina do consultório escutamos pessoas sendo imaginadas por seus pensamentos, guiadas por suas fantasias, impelidas por suas ideias suicidas, ou simplesmente se deparando com o grande enigma da sexualidade; muitas vezes compulsiva, desviante, perturbadora. Muitas ideias de grandeza, pequenas e grandes loucuras. Como sustentar uma perspectiva da saúde, do bem-estar, da auto-estima? Não é esse pessoal que chama pra dançar. Como é se relacionar com o desejo de morte de um filho? Com constelações de estrelas que anunciam uma morte, com o medo e ao mesmo tempo o desejo por um marido que encarna o diabo? Todos esses conteúdos que fazem parte da psique patológica, dão vida, tonalidade emocional, destronam o ego e deixam-no desesperado, aflito e doente.
Mas quem está doente?
Por que alguns valores precisam se apresentar de forma distorcida?
Afinal, o que quer a alma com isso?
De acordo com Hillman, os insights da psicologia profunda originam-se de almas in extremis, as condições doentias, sofridas, anormais e fantásticas da psique. Nas depressões, nas manias, nas ideias supervalorizadas, na paranóia, temos medo dos aspectos psicopatológicos da vida, porque eles ameaçam a vida.
Não pretendo interpretar o Anticristo, nem reduzir as imagens do filme ao literalismo da psicologia, mas gostaria de tecer algumas considerações sobre as imagens oferecidas pelo cinema. Aceitar o convite do diretor, experimentar e imaginar o filme através de uma perspectiva deformada e aflita. O filme beira o insuportável. E eu entendo que é nesse terreno que a alma se move, rasteja. Penso que é necessário um tanto de intimidade com esse território para ser analista, para acompanhar a alma, descer com ela. Senão, facilmente somos surpreendidos pelo furor curandis, arrancar a doença, tirar o paciente da depressão. Seguindo os passos de uma tradição médica, queremos arrancá-los deles mesmos, curá-los, ou influenciados pelo discurso religioso somos aconselhados a expiar nosso pecados em um confessionário, ou nos livrar de nossos demônios pelo exorcismo. Ao avesso de tudo isso, na perspectiva psicológica os pecados interessam, somos aonde estão nossos daimons, fazer psicologia implica em fazer um pacto com a morte (do literalismo do ego).
Anticristo é um filme sobre a morte.
Apesar da crueldade e da crueza das imagens, que muitas vezes nos faz desviar o olhar da tela, a fotografia de Anthony Dod Mantle é absolutamente fabulosa, quer nos enquadramentos ou na iluminação, produzindo imagens de grande beleza estética e profundidade emocional, tanto no preto-e-branco como à cores. A poesia no trabalho com as imagens nos permite assistí-las. A imaginação do mal encarnada nas metáforas do filme nos permite ver através da loucura uma pergunta sobre nossa fantasia cristã. Somos inconscientemente cristãos, estamos subjugados pela culpa e pela promessa do paraíso em uma outra vida, as custas do sofrimento nesta.
Segundo Nietzsche em seu Anticristo (livro de cabeceira de Trier desde os 12 anos): “… no cristianismo o corpo é desprezado, a higiene é repudiada como sensualidade (referindo-se ao fechamento dos banheiros públicos após a expulsão dos mouros). É cristão um certo senso de crueldade, contra si mesmo e os outros, o ódio aos que pensam diferente, a vontade de perseguir…O cristianismo quer assenhorar-se de animais de rapina, seu método é torná-los doentes – o debilitamento é a receita cristã para a domesticação, a civilização….”.
Contudo, uma atitude religiosa, de atenção e respeito aos processos internos, sem julgamento moral, nos aproxima e nos permite dialética com as imagens da alma. Não há nada do que se livrar, tudo é massa de trabalho.
O filme se inicia com as belas cenas do Prólogo, filmado num preto e branco, em câmara lenta e acompanhada pela peça “Lascia ch’io pianga” (Deixe-me chorar) da ópera “Rinaldo” de Georg Friedrich Händel, que reforça o tom sublime e trágico da premissa. Aqui está a base daquilo que o diretor quer explanar durante o resto do filme.
(Cena1 – Prólogo) 2
Desde a primeira sequência, é notória a vontade de Trier em usar a câmera para produzir significados e construir um universo simbólico para além do oportunismo dos choques. A câmera lenta, a simultaneidade e o haptic image – imagem tátil – nos permitem ficar no tempo presente, no tempo da imagem. O conceito de imagem tátil é inspirado em Tarkoviskij, a quem ele dedica o filme, e traz volume e textura à imagem de modo que temos a impressão de poder tocá-la. Todos esses recursos estão em função do que aqui chamamos de uma estética da crueldade. Para tratar de temas tão desagradáveis e fazer críticas tão contundentes ao nosso modo de vida contemporâneo, Trier, assim como Hillman, usa de todos os seus recursos.
Ela e ele (é assim que aparecem os personagens nos créditos finais, sem nomes), têm relação sexual enquanto a criança sai do berço e percorre o caminho da janela, derrubando coisas e fazendo barulho (não ouvimos, mas vemos). Quando a criança sobe na mesa aparece a imagem dos 3Três Pedintes – soldados de chumbo- que anunciam uma morte, ela encontra a janela aberta e cai. Mais tarde é revelado que a mãe vê a criança se aproximando da janela. A simultaneidade das cenas da queda da criança com o gozo da transa e a roupa revirando na máquina de lavar, sugerem uma ligação entre as imagens.
No capítulo 1 – Luto; enquanto Ele vai conseguindo controlar a dor da perda, Ela caí num processo de medo e culpabilização. Já aqui começa a ironia do diretor em relação a uma psicologia científica, repleta de racionalização. O marido psicólogo, em sua onipotência, resolve tratá-la, ele naturaliza o sofrimento dela, entende, ensina, sabe. Ele acredita na mente! Mantendo uma distância segura do sofrimento, ele, na posição de curador, negligencia sua própria ferida, enquanto tenta domesticar a patologia de sua mulher. A bruxa torna-se então a pobre paciente, que não é maligna, mas enferma.
Ele diz que o medo não é perigoso e oferece respostas terapêuticas a tudo. Em cada movimento que a câmera faz de um rosto ao outro, nos tornamos conscientes da distância que os separa – ela, com o rosto que salta, órfão, na escuridão; ele, com seu entorno sempre visível.
Em contraponto, ela é puro sofrimento, culpa e fúria. E essa fúria vai desaguar invariavelmente no sexo, que se torna cada vez mais compulsivo e parece apontar para uma descarga de tensão. Ela pergunta no começo do filme: “Será que meu luto é anormal?”. Essa atitude de estranhar, tirar do lugar da certeza produz muito mais do que a atitude do marido de explicar sua ansiedade fisicamente, achar normal, etc.
Cenas como as do filho com sapato trocado vista por ela nas fotos, apontam para uma perturbação. Algo desta mulher escapa e ela se dá conta disso.
A culpa pertence as experiências de desvios, ao sentimento de estar por fora, perdendo o ponto. Hillman se questiona se culpa e o patologizar podem ser tão alijados um do outro a ponto de podermos nos sentir patologizados e vulneráveis sem ao mesmo tempo sentir culpa. (p.180)
A culpa tomada literalmente recai sobre o ego, que não deveria ter falhado e este transforma-se em um superego, ocupando-se loucamente em reparações e auto-expiações.
A culpa também indica uma dialética, uma reflexão sobre o ato, que deve ser considerada, um indicativo de que onde há fumaça, há fogo. E sabemos que a combustão faz parte da alquimia.
Por meio desse sofrimento von Trier nos apresenta uma tese, em capítulos, sobre o feminino, a natureza e Dioniso como opositores ao cristianismo. Hillman no Mito da Análise faz um preciso histórico da inferioridade feminina e de como a histeria e as bruxas sempre tiveram uma intima ligação. A mulher como aquela que tem menos fé, que não tem alma, ou que é dominada por seu animal interno (seu útero). “Sempre que o diagnóstico é histeria , a misoginia não está longe” nos lembra o autor acompanhando a história da medicina.
Apesar da histeria ter fundado a própria descoberta do insconsciente e toda a psicanálise, o seu repúdio se faz necessário à consciência apolínea. Relacionando a mulher histérica as mênades, Dioniso é invocado, penetramos no campo do deus do êxtase.
2 Edição de cenas do filme apresentadas no Encontro
(Cena 2 – Título)
Em um tipo de imaginação dirigida ela é transportada ao Éden, floresta que a assusta, mas que deseja estar. A partida de fato para o Éden surge como tentativa de fazê-la entrar em contato com seus medos, em contato com a natureza, onde “tudo assusta”. A natureza é apresentada no filme como autônoma, ela não está a nosso serviço como gostamos de pensar com discursos verdes e fantasias antropomórficas e de equilíbrio. A natureza é onde o caos reina.
No Capítulo 2 – Dor (Reina o Caos), a natureza assume o papel principal. Tudo no Éden assume papel de personagem, o natural é sinônimo de horrendo, ameaçador e violento. Aqui a Teologia assume um papel importante pois começamos a receber referências religiosas que, escolhidas tendencialmente reforçam a conotação feminina da natureza, espelhando-a na natureza do feminino. Começamos a perceber qual é o Anticristo do título: a águia na natureza come seus próprios filhos, o veado carrega o natimorto e a raposa aparece com as entranhas abertas. A constelação dos animais carrega o sentido de morte. Mas morte do que, de que tipo de consciência?
(Cena 3 – Animais)
Vale ressaltar que é ele quem encontra com os animais na floresta, os animais como personificação do luto (veado), da dor (raposa) e do desespero (corvo). Na psicologia arquetípica a personificação é uma atividade autônoma da psique, que permite dialética. Personificar é diferente de se identificar, neste último não há relação.
Em seguida o marido encontra os escritos da tese dela sobre o feminicídio, ela alega que a “natureza é a igreja de Satã” e entende porque tantas mulheres tiveram que ser mortas na inquisição. Ela está apavorada com o que ela mesmo representa, seu corpo é transbordante, sua sexualidade escapa, ela acredita que a natureza controla seu corpo e que é má, logo a natureza humana também é má. Ela é o mal.
No 3º capítulo – Desespero (Genocídio), o filme assume definitivamente contornos de um filme de terror. É revelado que o maior perigo é ela – aparece como “me”. A escrita dela se desorganiza, árvores caem e ela está identificada com a natureza. São apresentadas diversas imagens desta simbiose mulher-natureza.
(Cena 4 – Natureza)
Nessa parte do filme, Von Trier ultrapassa os limites do tolerável, ela fura os tornozelos do marido e prende a um peso, corta o próprio clítoris quando lembra que viu o filho se aproximando da janela, apedreja o pênis do marido, o deseja, o persegue. Aqui mal, loucura, feminino e natureza se misturam e se metabolizam. É noite na floresta.
Os Três Pedintes, título do quarto capítulo, são apresentados como Dor, Desespero e Luto (os três capítulos anteriores), e personificados por um veado, uma raposa e um corvo. Ela acredita que ‘a chegada dos pedintes anuncia a morte de alguém’. Os animais também compõem constelações de estrelas, que fazem parte do seu delírio. Toda essa costura paranóica parece ser uma tentativa de dar sentido para o seu sofrimento. O sofrimento da alma busca significado.
Aqui podemos identificar uma indicação clínica: Quando o ego está muito fixado em uma única história, muito literal, furamos os sentidos, abrimos espaço para a multiplicidade; mas quando ele está apartado dos outros complexos, sem se relacionar com as outras ilhas da psique, quando deixa de ser arquipélago e vira ilha isolada, procuramos restabelecer o contato costurando com algum sentido, a construção do delírio é uma tentativa de organização.
O desespero, a dor e a morte constelados no céu e personificados nos animais da floresta podem ser entendidos como tentativas da psique de elaboração de seus complexos.
Um adendo sobre o autor…
Em entrevista Von Trier diz que jamais criou algo que não tivesse relação com seus próprios fantasmas e que o filme o tirara de uma fase aguda de depressão. Ele declara que é como se passada a tempestade retratada em ‘Anticristo’, ele pudesse ‘falar a respeito’ em ‘Melancolia’. Ele recorda os dias em que ficou deitado, tomado por um choro sem fim. “Há uma espécie de bênção nesse momento em que você desiste de tudo”, diz ele: “Quando sai disso, vem a melancolia.”
Não pude deixar de me questionar o quanto essas imagens de depressão e desespero escreveram o filme em questão. A relação entre obra e autor é questionável em muitos pontos, autores da escola de Frankfurt como Benjamim, chegam a alegar a autonomia total da obra em relação ao autor. Eu entendo essa posição como resposta as relações diretas de causa e efeito ou as tentativas selvagens de tentar explicar o autor pela sua obra, mas pra mim a radicalidade dessa afirmação está longe de fazer sentido. Me parece ingênuo ignorar a influência da experiência individual no processo criativo. O Anticristo como resposta imaginativa à depressão é minha hipótese. Gostaria de saber de vocês o que pensam sobre isso. Mas depois de ter acesso a tantos depoimentos de artistas sobre seus processos criativos tendo a sustentar minha posição. Penso a arte do cinema como alquimia das imagens e dos afetos, para autor e espectador.
Cito Hillman: “O alquimista projetava suas profundezas em seus materiais e, enquanto trabalhava com eles, estava trabalhando com sua alma. O instrumental desse trabalho era a imaginação: a alquimia era uma exercício imaginativo abrigado na linguagem das substâncias concretas e operações impessoais objetivas” (p.192).
O pessoal e o coletivo, o pessoal e o arquetípico, termos indissociáveis e caros a Jung, que dizia que quanto mais pessoal, mais impessoal a imagem se torna. É como se no fundo do pessoal encontrássemos o coletivo. Ele também apontava para o quanto era impossível fugirmos de nós mesmos, afinal, toda obra é uma espécie de confissão subjetiva. Ao personificar luto, desespero e dor essas imagens ganham alteridade, e quando não é mais “eu” ou “meu”, posso dialetizar.
Podemos imaginar as síndromes psicológicas como se fossem encenações míticas, cada qual com seu contexto, seu padrão, cada qual apresentando sua narrativa, apresentando seu estilo. Essas imagens podem ser imaginadas ou atuadas. O fracasso da imaginação leva ao ato.
Imaginar é um ato de crueldade, rompe com a realidade, subverte-a, corrompe-a. Imaginar é deformar, escreve Bachelard. Acredito que essa crueldade abre as portas para uma realidade que se mantém fechada para o ponto de vista literal. Imaginar abre para a multiplicidade.
Portanto, duas vertentes importantes do trabalho psicológico: a estética (aiesthesis), no sentido de percepção, de aproximação religiosa, atenta e de validação dessas imagens; e a ética, que implica no aprofundamento, no querer saber disso que se impõe. Precisamos nos debruçar metaforicamente sobre as imagens da alma para poder construir algum sentido para o sofrimento. A alma enxerga através da aflição. A ferida e o olho são um só.
Epílogo
Depois que os papéis se invertem, e o homem é dominado pelo pânico e a angústia, ele sufoca a mulher e depois queima a casa, como se faziam com as bruxas. Este capítulo termina com o homem se movendo muito lentamente, passando pela árvore morta e a paisagem se transformando em cada um dos seus movimentos, de modo que, finalmente, consiste somente em corpos nus. As mãos (desses corpos), que se materializaram pela primeira vez na relação sexual pelas raízes da árvore, agora aparecem como corpos nus ou cadáveres que saem do chão. Os mortos estão lá e sugerem uma conversa depois da morte.
No Epílogo, é manhã. Voltam o preto-e-branco, a câmera lenta e Hendel, aqui ilustrando uma paz ilusória e uma ironia cortante: A natureza alimenta o homem com suas frutas e as mulheres retornam. Um bando de mulheres sem rosto, despersonalizadas, poderiam ser interpretadas como bacantes ou bruxas, mas é certo que parecem voltar, ocupar a floresta, cercando o homem. Aqui a referência dionisíaca é reforçada.
Uma leitura possível é que ele tenha se tornado mulher no sentido dionisíaco. O caráter paradoxal muitas vezes apresentado no filme, compõe com o dionisíaco. Quando ele descobre que no topo da pirâmide dos medos dela está o “me” ele pronuncia “her”. Assim como o homem vê a mulher possuída e não inclui-se no “ME” pronunciando “her”, a mulher vê o homem como projeção ou como o próprio diabo. A associação de Dioniso com o demônio prossegue tanto no estudo alquímico da transferência como no Mysterium Coniunctionis de Jung.
Depois da morte dela, ele come as frutas silvestres e é cercado pelas “bacantes”, talvez ele tenha sido entusiasmado por Dioniso.
De fato, o Anticristo é associado a Dioniso, não só em Nietzsche, mas principalmente. O deus do êxtase, que liberta o homem de si mesmo, inclusive de seu gênero. O caráter dionisíaco, de equilíbrio entre fantasia e realidade, foi retratado tanto em homens como em mulheres na antiguidade grega.
No desenvolver do culto, os traços mais femininos foram adicionados ao caráter dionisíaco. Há três fases rituais na celebração de seus cultos: primeiro o vinho, que é habitado pelo deus e quem o consome torna-se, por sua vez habitado por ele, entrando em êxtase; “sai-se”, para dar lugar ao deus que em enthousiasmos entra na pessoa. Então, ocorre a mania onde a pessoa se perde e se torna um com o grupo de bacantes. Essa raiva momentânea se manifesta por uma dança furiosa. Finalmente, a pessoa chega a harmonia, um precursor de katharsis nas tragédias, que é a razão pela qual Dionísio tornou-se também o deus do teatro e das tragédias. O caráter dionisíaco também inclui as mênades, as mulheres que estavam em maioria entre os praticantes do culto dionisíaco.
Dioniso e a psicologia
Hillman, assim como Jung, afirma que Dioniso é uma estrutura arquetípica da consciência e que, apesar de ser o Senhor das Almas, têm sido deixado de lado pela psicologia e sua fenomenologia tem sido vista como como inferior, histérica, efeminada, desenfreada e perigosa.
Em Psicologia e Alquimia ele é descrito por Jung como: “… o abismo da dissolução desenfreada, onde todas as distinções humanas se misturam na divindade animal da psique primordial – uma experiência beatífica e terrível.”
Hillman escreve que compreender mal Dioniso para a psicoterapia pode ser pior do que a loucura, já que a experiência desse deus está intimamente ligada a tragédia, aos níveis instintivos e comunais da alma, a cultura do vinho, a psique feminina, sendo este o dominante arquetípico que expressa a própria vida.
Essa dupla ligação com a vida e a morte (Hades) faz dele uma experiência de ciclo e renascimento, ou da renovação do deus que envelhece, por ser o mais jovem dos deuses. O dionisíaco apresenta o não-sentido estético, natural, que aparece normalmente em antítese com a forma apolínea estética e conceitual de edificação do mundo.
O eterno retorno contém uma afirmação dionisíaca da vida, todos os valores são derrubados e reavaliados. Este evento é sempre uma e a mesma coisa, uma afirmação da vida. Natureza é, portanto, não apenas cosmos, mas o caos e a chance.
Dioniso é o deus dividido. O desmembramento se refere a um processo psicológico que exige uma metáfora corporal. Seria a auto-mutilação uma manifestação dessa experiência? O sadomasoquismo? A putrefação dos animais na natureza?
Por outro lado, o desmembramento do controle central é ao mesmo tempo a redistribuição da consciência para cada parte do corpo. Não uma reorganização ou integração, mas uma experiência onde o corpo se torna consciente de cada uma das suas partes, seus orgãos, suas zonas, como elementos distintos, uma consciência múltipla.
O dionisíaco atua na dissolução, ele era também chamado de Lysios, aquele que afrouxa. A palavra é cognata de lysis, que significa afrouxar, libertar, dissolução, colapso, romper laços, infringir leis (Hillman, E.D. p 188).
Se Dioniso é o deus da loucura, adorado por mulheres em êxtase (histéricas), ele nos oferece um modo de ver a lógica da loucura e do feminino de dentro da sua própria consciência. Sugere uma direção ao feminino como posição psicológica.
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