Aline Fiamenghi

O Carnaval e os Corpos que Importam

Aline Fiamenghi

O ano parece que só começa com o xirê do ilu oba de min, o orgasmo cardíaco do tarado ni você, quando explode o coração em drama em homenagem à Bethânia. Estar a deriva no centro, beber com desconhecidos, dançar com deus e todo mundo, amar, cantar alto, entrar em transe, pular em bando, ser fera, ser outra.

A fantasia eterna é o fim da desigualdade social e da misoginia, mas parece que foi mais um sonho essa nova ordem mundial quando chega a segunda de cinzas e cai o pano. Funciona como retorno do recalcado, volta todo ano. Diriam alguns que é problema estrutural, não sei… Certamente pilares sociais dos podres poderes da gente mesmo que não quer perder privilégios.

Sempre achei que carnaval combina com 8M, porque quando fico com pouca roupa penso melhor na situação da mulher no Brasil e o quanto as relações sociais históricas podem favorecer ou dificultar nossas trajetórias. Sejam mulheres mães, mães solo, negras, indígenas, trans ou cis os índices de violência contra a mulher e feminicídios assustam – 1.128 mortes por feminicídio em 2024, 78.463 casos de estupro ao longo do mesmo ano, o que resultou em 214 vítimas por dia, uma média de nove ocorrências por hora, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp). O anuário da ONU publicado no dia 25 de novembro de 2024, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, aponta um dado estarrecedor, o assassinato de mulheres e meninas no mundo, que equivale a 140 mulheres mortas todos os dias. Outros dados nos dão o retrato da falta de representatividade feminina nos espaços de poder, onde apesar da maioria da população e do eleitorado ser formada por mulheres os espaços de decisões políticas têm sido majoritariamente ocupados por homens, e as poucas mulheres que ocupam esses espaços sofrem com discriminações e o silenciamento de suas opiniões.

Quais os corpos que importam? Judith Butler discorre sobre isso em seu belo e difícil livro, onde cria questões tensas e talvez insolúveis, nos convidando a ficar com o problema. Como prescindir do gênero mulher ou da materialidade do corpo para falar de feminismo? Funcionar a partir da lógica falocêntrica, implica em deixar tudo que não é da égide do homem branco hétero à margem. Nesse país onde as balas “perdidas” tem alvo certo e a violência contra mulheres e crianças é instituída, como prescindir da materialidade desses corpos? Seres que não eram considerados cidadãos até outro dia (e agora são?). Entendo que para aprofundar a discussão precisamos pensar logicamente em detrimento da fenomenologia do cotidiano, explícita nas notícias do jornal, nas decisões judiciais, na representatividade política, etc, onde a ideia de branquitude é um universal e a ideia do homem branco cis é a identidade de referência.

“O corpo que é racional desmaterializa os corpos que não podem apropriadamente representar a razão ou suas réplicas e, ainda assim, é uma figura em crise, pois esse corpo da razão é a própria desmaterialização fantasmática da masculinidade, que requer que mulheres e escravos, crianças e animais sejam o corpo e representem as funções corporais que não executarão”(Donna Haraway).

Não podemos deixar de pensar que é uma teoria da dominação e precisamos criar outras epistemologias. Como os limites do corpo são criados pelo tabu sexual e pelo falocentrismo? Objetificar o corpo tem a ver com o lugar subversivo dele, lugar de denúncia do mal estar e principalmente, afirmação da potência de vida. Aos que clamam pelo discurso de morte, da violência, do apagamento das diferenças, na insistência de ver o outro como subalterno. Aos que tem medo do corpo, da sexualidade e tara pelas questões de gênero (sim, estou falando da extrema direita) eu diria que o carnaval é uma boa resposta e a alegria segue sendo a prova dos nove.

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